sábado, 28 de maio de 2011

Memórias de uma carretilha

            Se a memória é a “velha cidade das traições”, como disse Machado de Assis, frequentemente, esta desperta da escuridão de forma involuntária, ao contato de objetos que nos cercam, que nos pertenceram ou que nos foram transmitidos por familiares e amigos íntimos. 
É como se caminhássemos em meio a lembranças adormecidas que clamam por atenção, agregando um valor peculiar a objetos dos quais não sabemos ou recordamos o preço. Não se trata mais de mercadoria, mas de aventuras ou anedotas, de instantes compartilhados, ou ainda de imagens de pessoas que palpitam sobre a superfície inerte das coisas. Ao percorrermos os corredores e peças de nossas moradias, é preciso cuidar para ouvir os sussurros desses objetos inanimados que insuflam vida em nossas memórias, como um súbito sopro enche um balão, dando-lhe forma e propósito. 
Foi assim que me deparei com uma velha carretilha, no fundo de um armário, abandonada em um saco plástico. Sem mapa, havia encontrado, por acaso, um tesouro: a carretilha de meu avô paterno, já falecido e cuja imagem se desgastava sob o efeito da corrosão de nossa obrigação de continuar. Era uma Gilfin 1000, fabricada no Japão, provavelmente na década de 50 ou 60. Ei-la entre minhas mãos, agredida em seu brilho de outrora pela umidade e a maresia.  
Sem perceber, imagens saltaram em minha mente como um atleta dispara ao ouvir o tiro da largada, enchendo-me de momentos passados, como quando havia pescado com meu avô. Lembrei daquela pescaria no Algarve, no sul do Portugal, também com meus irmãos. Recordei-me, voltando ainda mais no tempo, dos lagos da fazenda de meus avós, nos quais pesquei pela primeira vez sob os cuidados de um grandioso chorão. Vejo-me agora levando os peixes para minha avó, que gentilmente prepara minhas presas de um dia. Ou ainda, entrevejo perplexo a metade de meu caniço deslizar sobre o espelho da água, levado por um peixe maior e mais esperto. Eu continuei ouvindo os sussurros, as recodarções que a carretilha arremessava em minha mente. 
Finalmente, aquele objeto merecia um melhor destino e decidi restaurar a velha carretilha. Foi assim que pedi a ajuda de meu melhor amigo e que juntos pudemos dar uma nova vida àquela peça rara, estilhaço de uma existência. Aqui está a forte carretilha para fisgar atuns e outras espécies de pesca de corrico, prateada e rubra, funcionando quase como que nas mãos de meu avô. Este continua vivo, de certo modo, na singela carretilha que agora abriga, por causa de sua restauração, momentos indeléveis de amizade.

A carretilha voltou a camuflar recordações, sobrepostos às do meu avô  ou de minha infância e, graças a ela, talvez sobreviva um pouco nas mãos de meu filho.
Gilles Jean Abes





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